
Há alguns anos li um conto do escritor americano Kurt Vonnegut chamado “The big trip up Yonder” (1954)*, que mostrava um mundo onde as pessoas viviam para sempre, graças a uma droga chamada anti-gerasone. Essa história me veio logo à mente depois que li o artigo da Simone Lara aqui no blog dizendo que a pessoa que viverá 1.000 anos já nasceu.
No conto, toda a família Schwartz vive apertada num apartamento em Nova York, dormindo em colchões espalhados pela sala e corredor, exceto o patriarca, o Avô (Gramps), que pela senioridade tem o direito de dormir no único quarto. É ele quem determina, por critérios obscuros, quem pode dormir na única mobília decente: um sofá-cama. Ele nunca acha que está na hora de morrer. Vários membros da família cogitam diluir o anti-gerasone do avô, para finalmente se livrarem de sua tirania. O mundo venceu suas maiores ameaças – a doença e a morte -, mas a superpopulação e a falta de comida de verdade tornam a vida das pessoas miserável. Não há mais metais, petróleo nem terras aráveis, e o governo fornece uma ração feita de algas marinhas e serragem reprocessados. Um preço alto demais a pagar pela sobrevivência ilimitada. Quando o avô desaparece de casa e uma batalha violenta pela posse do quarto se instala entre os parentes, a polícia prende todos e – surpresa – a família acaba adorando a cadeia, onde finalmente cada um consegue uma cela, uma cama e banheiro individuais. Finalmente um resgate da privacidade e… de um pouco de dignidade humana. Você adivinha o que aconteceu com o avô?

Uma série de TV lançada na Netflix em 2018, Altered Carbon, também faz referência a um mundo onde as pessoas vivem indefinidamente, graças a armazenarem suas consciências em dispositivos especiais que podem ser transferidos para “capas”, outros corpos. A única forma de morrer é se o dispositivo for danificado/destruído. Os super-ricos fazem backup de seus dados na nuvem e clonam seus próprios corpos jovens, e assim podem se dar ao luxo de fazer download para novos dispositivos e quantas “capas” de si mesmos tiverem estocadas. Claro que o ambiente desse mundo é distópico, com a maior parte da sociedade vivendo em cidades superpovoadas, poluídas e escuras, enquanto os “matusas” de 300+ anos vivem em cidades ensolaradas acima das nuvens negras. O ponto mais interessante (além de ver dispositivos de mulheres transferidos para “capas” de homens e vice-versa, pois os pobres não podem se dar ao luxo de escolher), é o fato de que os “matusas” ficam extremamente entediados depois de algumas centenas de anos, e por isso precisam de estímulos cada vez mais potentes para se divertir e sentir prazer. Isso inclui torturar e matar prostitutas, por exemplo. Ou drogas alucinógenas e competições ultra-arriscadas.

No livro “A creed for the third millennium” (1983) de Colleen McCullough, o mundo em 2023 está superpovoado, os recursos são escassos, o clima é gelado e plantas são um luxo. O Ministério do Meio-Ambiente é o mais importante, e o fluxo de pessoas é regulado pelo governo, que estabelece turnos de trabalho alternados e precisa organizar as viagens de férias, pois não há espaço para toda a população se movimentar livremente sem gerar caos nas cidades e estradas. As pessoas estão desesperançosas e isso cria o ambiente perfeito para serem manipuladas por um líder carismático.
A busca da vida eterna e da fonte da juventude são recorrentes na sociedade pós-moderna. Como trabalho com sustentabilidade, sei que a superpopulação (especialmente o controle da natalidade) é o assunto-tabu dessa área. Está claro que o planeta não tem condições (naturais) de prover recursos e processar os resíduos de tantas pessoas. Embora o desafio da longevidade seja mais comumente associado a uma força de trabalho jovem que será incapaz de sustentar tanta gente mais velha (inversão da pirâmide etária, falência da previdência), pouco se fala da pressão que haverá ao adotarmos tecnologias que nos distanciem cada vez mais da morte. Se no século 20 a média de vida de um norte-americano era 58 anos, hoje já é 74 para homens e 78 para mulheres. Como a tecnologia avança exponencialmente, chegaremos a 300 rapidinho; ou a 1.000.

Talvez enredos que só vimos em filmes de ficção-científica arrepiantes, como “Soylent Green” (1973) e “Fuga no Século 23” (1976/Logan’s Run) um dia se tornem realidade: sem saber, as pessoas sejam compulsoriamente escolhidas em torneios para serem depois transformadas em comida para o restante da população. Será esse o pedágio cobrado pela imortalidade ?
(*) depois renomeado “Tomorrow and tomorrow and tomorrow
Assustador. Mesmo sendo ficção podemos imaginar uma realidade possível. Eu não gostaria de viver por tantos anos.
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