Precisamos falar sobre a não-maternidade

No recém-lançado livro “Maternidade” (Cia. das Letras, 2019), a escritora canadense Sheila Heti (foto) levanta a questão da enorme cobrança que existe sobre as mulheres que optam por não ter filhos. Ela diz “Ainda é uma opção muito corajosa decidir não ser mãe” e pede: “Parem de perguntar às mulheres que não têm filhos, por que elas não têm!”.

Quando a mulher chega lá pelos 40 anos, baixa uma espécie de taxímetro biológico que vai tiquetaqueando de forma perturbadora na cabeça, cobrando uma resposta definitiva: “tem certeza MESMO?!?”. A ideia de não ter uma descendência pode gerar um dilema existencial para muita gente, e até para quem – sendo bem honesta consigo mesma – nunca sentiu esse chamado. É a última chance, a reta final, o tudo ou nada, a corrida maluca.

Certa vez, num jantar de aniversário, me lembro da irmã do meu padastro, moradora do interior de São Paulo e vinda de uma família de 12 irmãos, espantada quando eu disse taxativamente que não queria ter filhos, retrucando: “Mas não é normal uma mulher não querer ser mãe” – e me olhou como se tivesse algo de muito errado comigo. Esse tipo de cobrança sempre foi presente na minha vida. Mas o que é “normal”, afinal?

Posso dizer que sou uma mulher cercada de muitas mulheres “anormais” como eu… se eu fizer uma contagem básica das amigas íntimas que chegaram aos 50 sem filhos, tem a Simone, a Ana, a Karla, a Heloísa, a Andrea, a Daniella, a Vania. Somos uma comunidade que sabe que o nosso futuro será diferente de quem teve filhos e netos. Talvez tenhamos que contar com sobrinhos, ou umas com as outras! Me lembro de um anúncio de previdência privada que começava com o pai sussurrando ao lado do berço do filho recém-nascido, que estava muito feliz porque agora teria alguém para cuidar dele na velhice, e ao ouvir isso o bebê abria o maior berreiro!

Uma mulher pode tomar essa decisão por razões complexas e pessoais, não porque seja egoísta, hedonista ou desconsiderada.

Para calar a boca de quem ficava me pedindo explicação, eu costumava dizer que a pergunta tinha muitos níveis de resposta, que poderiam ser resumidos em uma frase: quando eu queria, eu não podia, quando eu podia, eu não queria. As razões para não ter filhos vão desde não querer mesmo até querer, mas por algum motivo esse projeto não se concretizar. Não apareceu um homem com quem se teve vontade de realizar um projeto definitivo desses; todas as tentativas naturais e artificiais falharam e a pessoa desencanou; não tem vocação para ser mãe solteira; preferiu se realizar como pessoa por meio da carreira e não da maternidade. Qualquer que seja a situação, você já viu alguém questionar uma mulher por que ela resolveu TER filhos? Ou questionar um homem por que ele resolveu NÃO TER?

Nos séculos passados, os casamentos eram arranjados para forjar alianças políticas, então a mulher engravidava o quanto antes para garantir a sucessão do reino, de preferência várias vezes. Era sexo geopolítico e sem amor, que produzia crianças geralmente amamentadas por amas-de-leite, criadas e educadas longe dos pais. Na modernidade, o amor romântico gerou a ideia dos filhos como uma confirmação desse sentimento profundo, fortalecedores do vínculo do casal; alguém que irá levar adiante sua carga genética, para toda a eternidade, geração após geração. Mais ou menos como uma realização impossível de imortalidade. A mulher-esposa-mãe é uma figura central e quase sagrada dessa visão de mundo. A maternidade como um imperativo biológico indiscutível.

Para a escritora israelense Orna Donath, autora do polêmico “Regretting Motherhood”, a ideia de que as mulheres vieram naturalmente equipadas para cuidar é uma questão política, e o debate sobre não querer ser mãe ou se arrepender de ter sido é algo perigoso para a ordem social. Em alguns países com baixa taxa de natalidade, como a Alemanha, as mulheres jovens se sentem extremamente pressionadas a terem filhos.

Certamente o feminismo teve um papel muito importante para desmontar essa narrativa, e reafirmar um “feminino” que não passa pela maternidade. É um olhar ultrapassado enxergar a mulher sem filhos como uma mulher pela metade, fracassada ou infeliz.

Por conta dessa pressão incessante, a atriz Jennifer Aniston assinou uma coluna no jornal Huffington Post em 2016 reclamando da forma como a sociedade cobra as mulheres em relação a estereótipos de família e forma física. Cansada de ser perseguida por paparazzi, rotulada de “Jen triste” porque teria sido largada por Brad Pitt por não ter lhe dado filhos, questionada por não ter engravidado do 2o marido, ela respondeu:

“Não estou grávida, estou farta”

5 comentários

  1. Muito boa esta reflexão. Já fui cobrada muitas vezes, até por minhas amigas freirinhas que sugeriram eu fazer uma produção independente (que moderno!). Mas há muitas formas de se realizar. não necessariamente tendo que parir um rebento.

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  2. Mito do Amor Materno Elizabeth Banditer Estudou , culturas diferentes , chegou a conclusão que o Amor Materno, é cultural, esse é o ponto de vista da autora. Nos anos 80 Bjs

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    1. Que interessante! Há alguns anos, quando a Fernanda Lima fazia o Saia Justa, ela fez um comentário corajoso dizendo que o amor de mãe só se desenvolve depois de algum tempo, porque quando o filho nasce são dois estranhos, a mãe está exausta, a criança cheia de demandas, e levam tempo para criar uma conexão. Foi a primeira vez que vi alguém ter a coragem de assumir que a maternidade não é automaticamente sublime e prazerosa.

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